A PERFORMANCE DO CÂNONE MUSICAL:
ESTADO ATUAL, POSSIBILIDADES E PARALELOS
Professor Flavio T. Barbeitas
Introdução
O presente trabalho visa colocar em questão a chamada performance
musical. Mas o que isto significa, colocar em questão? Seria a elaboração de um
estudo histórico com o objetivo de traçar o nascimento e o desenvolvimento
desse fenômeno? Seria um apanhado das várias possibilidades em que hoje pode se
dar uma performance em música? Ou tratar-se-ia de uma
nova tentativa de refazer o conceito de performance
musical de modo a acomodar os desafios trazidos pela revolução tecnológica? É
inegável que o desdobramento de qualquer uma das possibilidades acima tocaria a
questão da performance e poderia resultar num
importante estudo sobre o assunto. Todavia, nenhuma delas, isoladamente,
satisfaz o que se entende aqui por colocar em questão. Na verdade, o
nosso objetivo é, curiosamente, a um só tempo mais simples e mais ambicioso, na
medida em que pretende partir, e em nenhum momento se afastar, da pergunta, o
que é performance musical? Pronunciada e ouvida nos
moldes do senso comum, a pergunta é incapaz de suscitar maiores interesses,
pois poderia ser facilmente superada com a fabricação de uma definição clara e
precisa a exemplo de tantas que já existem. Entendida dessa maneira, a pergunta
o que é performance musical? não
constituiria nada além de um impulso inicial para a explicação desta ou daquela
possibilidade de performance ou para a elaboração de uma tão correta quanto
efêmera teoria acerca do fenômeno. No entanto, o que se pretende aqui é
justamente escapar da armadilha do senso comum para recuperar o que a pergunta guarda de essencial. É nesse sentido que um outro
e mais amplo horizonte se abre nos domínios da questão e o interesse recai em
indagar primeiramente pela condição de possibilidade da articulação de música e
performance. O que há hoje de pressuposto e, portanto,
de irrefletido na expressão performance musical? Que
relação essencial há entre performance e música? A que
tipo de evento se refere a expressão performance
musical e por quê? Que desafios trazem os novos tipos de performance
para se pensar a questão o que é música?
Dizíamos que este trabalho iria partir da pergunta o que é performance
musical? e dela não pretenderia se afastar. Isto
porque, tomada em sentido essencial, toda e qualquer questão não inicia um
percurso que pretenda conduzir a um lugar diferente daquele por ela sugerido.
Pelo contrário, uma questão essencial só pode mesmo levar a um aprofundamento
de si própria, na medida em que não é exatamente um ponto de partida – o que
pressuporia também uma chegada – mas, fundamentalmente, a instauração de um
campo de interrogações em que ela própria, enquanto questão,
é colocada em
questão. Em última instância, somos nós mesmos que habitamos
o centro desse campo circular e isso em vários níveis: como estudiosos da
música, como produtores e consumidores de música, como seres humanos a quem a
música sempre falou, fala e falará em termos
essenciais, desde a origem mais originária até um não-se-sabe-onde-nem-quando
do futuro.
A grande ambição deste trabalho é, portanto, ser um exercício de pensamento.
Perguntar pela performance musical significará sempre,
aqui, refazer a pergunta pela própria música, desconstruir
conceitos, ultrapassar as categorias e classificações objetivamente dadas, para
poder enxergar o movimento, a dinâmica vigente sob as proposições do discurso
lógico-racional. Acima de tudo, confiamos na força de um projeto interrogante
para a instauração da reflexão num campo em que, talvez, mais do que em
qualquer outro, ela esteja ausente.
Justificativa
Mas o que realmente pretende esse estudo ao colocar em questão a performance musical? O que torna esse tema algo digno de ser
estudado? O que efetivamente se pode pensar colocando-se a performance
musical em evidência?
Inicialmente, analisemos sucintamente como a performance
é em geral entendida pelos músicos e de que maneira esse entendimento é
reproduzido, por exemplo, no ensino formal da música. Basicamente a performance é compreendida como a execução de uma
interpretação de uma determinada obra musical. É aquele momento em que a
música, por assim dizer, ganha vida, torna-se efetivamente o que ela é, ou
seja, o som de alguma maneira organizado. Nesse sentido, a performance
integra todo um processo de “produção e comunicação musical”, tradicionalmente
representado por um esquema em que atuam, com funções mais ou menos
delimitadas, as figuras de um compositor, de um intérprete e de um público
ouvinte. A performance seria aí a ocasião em que o
processo sai do estado de potência para, de fato, se realizar e isso mediante a
participação conjunta daqueles três elementos, com forte preponderância da
figura do intérprete, responsável direto pela realização sonora da música. Ao
longo do tempo, a consolidação desse esquema de comunicação cada vez mais
reafirmou o relevo do papel do intérprete – que acabou por adquirir o status de
centro do espetáculo – gerando assim o entendimento da performance
como um quase sinônimo da interpretação musical. Vale ressaltar, além disso,
que mesmo esse conceito de interpretação foi progressivamente empobrecido,
sendo tomado num sentido restrito de decodificação da partitura e de
demonstração de habilidades virtuosísticas do músico
ou, quando muito, sendo avaliada a partir de impressões referentes à inspiração
e ao sentimento, entidades tidas como naturalmente avessas a qualquer tentativa
de teorização.
O ensino formal da música nos conservatórios, e posteriormente nas
universidades, se firmou como um alimentador desse processo, na medida em que,
definidas as duas possibilidades de formação – de compositor ou de intérprete –
organizou o saber musical privilegiando de um lado o treinamento motor com
vistas ao desenvolvimento da virtuosidade e, de outro, o provimento de
ferramentas, ditas teóricas, para a correta leitura e análise da escrita
musical e das obras canônicas. No seu todo, do ponto de vista da performance, o processo acarretou várias conseqüências,
dentre as quais podemos citar:
- o absoluto privilégio da escrita como fonte
do saber musical e da própria música, sendo a interpretação reduzida ao papel
de uma espécie de decodificação temperada pela subjetividade do músico;
- a equivalência da performance musical a esse tipo de manifestação da
interpretação;
- o predomínio absoluto do intérprete no momento da performance, tendo o
compositor e a obra apenas como referência, e o público como mero contemplador.
É claro que todo esse quadro refere-se a uma
determinada tradição musical, aquela chamada de erudita, européia, culta, séria
ou ocidental. Boa parte das críticas a esse modelo ainda dominante de concepção
da música e da educação musical buscaram sempre fazer
notar exatamente a enorme restrição que ele comporta na visão da música como
manifestação cultural. Com o objetivo de desconstruir
exatamente o esquema tradicionalmente estabelecido de comunicação em música,
procurou-se mostrar como, dependendo da manifestação, o triângulo compositor-intérprete-ouvinte pode ser profundamente
alterado, ou mesmo totalmente desfigurado. De um lado, estudos históricos
permitiram identificar o surgimento desse tipo tradicional de espetáculo
musical em um momento relativamente recente da própria história da música
ocidental, o que naturalmente impôs a sua própria relativização. Além disso,
considerou-se que parte importante da produção musical de meados do século XX
para cá, coloca em cheque, entre outras coisas, exatamente a figura chave do
formato tradicional da performance musical, ou seja, o
intérprete. A audição de uma composição eletroacústica, por exemplo, pode
prescindir totalmente da figura humana como mediador entre a obra do compositor
e o ouvinte, já que, muitas vezes, a própria obra só pode ser executada por
aqueles instrumentos que tornaram possível a sua concepção, os meios fonoeletrônicos. Por um outro caminho, manifestações como o
jazz, demonstram como, num movimento análogo a práticas musicais barrocas ou
pré-clássicas, há uma subversão, de outro modo ainda, do esquema tradicional da
performance, pois a criação da obra musical é, no
caso, jogada para o momento mesmo da sua realização, através dos processos de
improvisação nos quais compositor e intérprete se confundem no mesmo sujeito.
Exemplos ainda diferentes desses, ilustram como uma
interferência radical no papel do público, que deixa de ser apenas um
contemplador para também realizar sons, produz alterações não só na obra, que
também nesse caso vai se realizar no momento da execução, mas em todo o
espetáculo que adquire um formato realmente inovador. São experiências que,
seguindo a trilha aberta por John Cage, por exemplo,
transformam a performance musical a partir de dentro,
com reflexos inevitáveis no conjunto de significados em que a música se insere.
Todo esse conjunto de exemplos nos serve aqui para a formulação de algumas
perguntas. Quando falamos de música erudita e um conjunto de imagens nos vem à
mente – os concertistas dispostos no centro de um palco; o programa contendo o
repertório a ser executado e um histórico da formação do intérprete; o próprio
teatro e o público, etc. – nós conseguimos separar a música de todo o aparato
que a cerca? É mesmo possível fazer essa separação? Quando se acena com a crise
ou com o fim da chamada música de concerto, está se mostrando que as grandes
obras canônicas da tradição musical já não têm mais nada a dizer ou que há a falência
de um determinado tipo de espetáculo onde essa música é veiculada? O modelo
estabelecido de performance é o único que serve para a
música erudita tradicional? É possível a performance
desse tipo de repertório absorver o formato de apresentação de outros gêneros
musicais ou da chamada música contemporânea?
A questão parece encontrar paralelo em outras formas artísticas. Em virtude da
revolução tecnológica, discute-se muito, por exemplo, sobre os novos possíveis
suportes das narrativas literárias. Como irá circular a literatura no futuro?
Somente nas telas do cinema, do vídeo, do computador, ou ainda haverá espaço
para o livro? Como irão sobreviver as grandes obras do cânone literário? Como
será a recepção das obras com os novos suportes? Quais as novas possibilidades
de leitura?
O presente trabalho quer justamente investigar quais as possibilidades de
articulação entre performance e música, não com a
pretensão de propor um novo modelo performático, mas com o objetivo de
instaurar a reflexão lá onde a repetição e o engessamento de posturas e
atitudes tornou-se regra. Para isso, partiremos da idéia de que a performance, muito antes de ser algo destinado a reproduzir
o que quer que seja, constitui-se como possibilidade de salto sobre o que está
objetivamente dado para fazer vigorar o movimento e a dinâmica que, de alguma
maneira, estão contidos em toda e qualquer obra. Afinal, obra não significa
apenas a obra, como objeto, mas compreende, de forma mais originária, um operar
(do latino opus), um pôr-em-obra que pode encontrar
na performance a sua possibilidade de vigência. Essa
forma de abordagem é ainda acrescida de interesse se notarmos
como esse movimento da obra pode se articular com o movimento próprio da música
que, enquanto uma linguagem sem referente, articula, não representações, mas
uma dinâmica de realizações.
Objetivos
Tendo em vista as idéias apresentadas acima, tentemos a seguir esboçar uma
lista de objetivos do trabalho:
- buscar uma reflexão sobre a performance
musical a partir dos seguintes questionamentos: o que é música? quais as condições de possibilidade da relação entre
performance e música?
- investigar a possibilidade de a performance fazer
vigorar e se relacionar com o movimento originário de toda e qualquer obra;
- analisar as soluções performáticas de obras musicais contemporâneas que
prescindem dos elementos constituintes do esquema tradicional de performance em
música;
- investigar de que maneira a performance da música erudita tradicional pode
absorver soluções de performances contemporâneas;
- traçar paralelos entre as possibilidades de circulação das obras canônicas da
tradição musical e da tradição literária.
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