Carnaval Antiinclâmico: o discurso carnavalizado de Sebastião Nunes em Decálogo da Classe Média

Ana Paula Domingues Fernandes

É extremamente confortável acolher a idéia de que, geralmente, qualquer texto é aberto a várias interpretações. No entanto há que se considerar que, ao admitir mais de uma leitura, o texto não aceita toda e qualquer decifração: há nele traços que delimitam suas possibilidades interpretativas, uma vez que é possível identificar indicadores polissêmicos que não se criam ao sabor do arbítrio do leitor, “mas a partir das virtualidades significativas presentes no texto.” A isotopia de um texto oferece, portanto, um roteiro de leitura, determinando o modo de lê-lo.

A partir dessas afirmações, desenvolvemos o presente estudo pretendendo uma leitura da obra Decálogo da Classe Média, de Sebastião Nunes, em que, localizando no texto seus indicadores polissêmicos, buscamos realçar a isotopia que permite inscrever essa obra em uma tradição da literatura carnavalizada, sistematizada por Mikhail Bakhtin e discutida por inúmeros teóricos. Nosso propósito é inserir a obra em um gênero ligado ao campo do cômico-sério – a sátira menipéia – que encara o riso como uma antiga e terrível forma de crítica. Tencionamos, para isso, interrogar o discurso de Nunes, na tentativa de legitimá-lo como registro crítico contra uma classe em franca decadência, a classe média, salientando a utilização do riso, pelo autor, como arma crítico-filosófica.

O texto de Nunes está impregnado de imagens, situações e incidentes que só podem ser compreendidos à luz da teoria da carnavalização; suas possíveis inconsistências textuais resultam de um movimento enunciativo que tem suas raízes fincadas na tradição carnavalesca. Uma percepção carnavalizada do mundo torna possível a existência de excentricidades e ambivalências, aproximando elementos contrários que coexistem dialogicamente no texto, como o sagrado e o profano, o grande e o insignificante, o elevado e o baixo, o sábio e o tolo, o erudito e o popular, entre outros.

Identificam-se, a partir do título, elementos sobre os quais o autor balizará toda a obra. A palavra “decálogo”, segundo Aurélio Buarque de Holanda, significa “os dez mandamentos bíblicos da lei de Deus” ou “conjunto de dez leis ou princípios filosóficos, morais, políticos, etc” . Em primeiro lugar, o livro possui apenas três leis e não dez, sendo esta a primeira transgressão de tantas outras que se seguem. O autor comenta o fato, afirmando que, após a publicação do primeiro volume, em 1998, “ao longo dos próximos 3 anos, deverá ser editado 1 volume por ano, cada qual com 3 leis, de modo a totalizar 4 volumes e 12 leis”, o que não se cumpriu, por enquanto. A isso, acrescenta o autor que se trata “de um Decálogo com 12 leis. Nada é absurdo no universo da classe média.”

Nesse sentido, Sebastião Nunes justifica a publicação com ironia ferina:

Este 1º volume do Decálogo da Classe Média atende com urgência urgentíssima às necessidades docentes, discentes e maledicentes dos cursos de comunicação, antropologia, sociologia, biologia, matemática, física, psicanálise, economia, informática, letras, filosofia e ciências políticas, que sofrem de perniciosa carência de estudos sérios sobre o zoopatológico assunto.

Desde que principiou sua lenta, sutil e constante evolução – ao lado de baratas, gafanhotos, carrapatos, pulgas, amebas, piolhos e camaleões – , rumo ao domínio da Terra e talvez futuramente do Universo conhecido, a classe média ainda não merecera um estudo sério e metódico sobre suas peculiaridades, ou seja: classificação biológica, comportamento individual e grupal, gostos, motivações e interesses, etc.”

A interessante montagem textual retarda a apreensão do sentido global da obra, ao mesmo tempo em que deixa transparecer a crítica aos valores distorcidos da classe média. Parece correto admitir que esta, pelo menos em parte, tende à supervalorização da cultura acadêmica cientificista. O autor segmenta a obra, partindo de formas fixas próprias da ciência, mas que, quando muito, possuem apenas uma tênue linha de ligação entre si. Assim, todos os segmentos podem ser lidos separadamente, de trás para diante, do meio para o fim ou para o início, sem que o sentido proposto se perca. Contribuindo para tal malabarismo está o fato de a obra não possuir qualquer ordem cronológica. Elaborada de forma a apresentar uma verdade, sua demonstração, seu corolário (ou dedução que decorre da demonstração), seu escólio (que vem a ser o esclarecimento ou a interpretação de um texto) e os respectivos exemplos, na verdade não explicitam muito, deixando parcialmente ocultos os mistérios do texto e a complexidade de sua moldura. O texto pede, desta forma, novos olhares: novos leitores que entabulem um diálogo direto, pois não há nele uma palavra final. Há espaços a serem preenchidos e não-ditos a serem interpretados.

A ironia está colocada como “resultado de uma contradição percebida pelo receptor entre a duplicidade enunciativa do processo.” O leitor, lidando com a ambigüidade, deve descodificar o texto, atuando como um dos produtores de sua significação. Através da ironia instituída na liguagem, Nunes tenta alterar a organização social vigente. Sobre esse procedimento, encontramos a seguinte assertiva de Henri Bergson:

Toda rigidez do caráter, do espírito e mesmo do corpo, será, pois, suspeita à sociedade, por constituir indício possível de uma atividade que adormece, e também de uma atividade que se isola, tendendo a se afastar do centro comum em torno do qual a sociedade gravita; em suma, indício de uma excentricidade. E, no entanto, a sociedade não pode intervir no caso por uma repressão material, dado que não é atingida de modo material. (...) O riso deve ser algo desse gênero: uma espécie de gesto social.

E ainda: “Obteremos um efeito cômico ao transpor a expressão natural de uma idéia para outra tonalidade”. Abolindo, ao menos literariamente, as verdades sociais estabelecidas, Nunes permite o surgimento do diálogo entre essas e as verdades textuais propostas: utilizando a ironia, referenda uma vez mais o discurso bergsoniano: “Ora se enunciará o que deveria ser fingindo-se acreditar ser precisamente o que é. Nisso consiste a ironia.” Nas palavras do autor, o Decálogo é: “Fábula moderna sobre o que poderia ser mas não é, o que seria se fosse possível, o ser despojado de tudo, o tudo atulhado de nada, a impossibilidade do possível, a sutil beleza da grossura, o nada abraçado ao zero.”

Para compreender melhor essa fábula moderna, é interessante verificar, com Beth Brait, que

O recurso ao lúdico, a interferência de séries, o diálogo entre discursos e textos é, em geral, utilizado com a finalidade de denúncia, de crítica a atitudes entrevistas, mas não necessariamente explicitadas. Muitas vezes, é precisamente esse recurso que vai revelar um enunciador que, instaurando vários locutores, deflagra um humor cujas entrelinhas atualizam representações de uma dada mentalidade, valores característicos de um dado momento ou de uma dada cultura (...)”.

Talvez isso explique a composição da obra, forjada a partir de diversos gêneros, como os discursos pseudocientífico, poético, iconográfico e jornalístico, os ditados e as quadras populares, sempre com características paródicas, irônicas, satíricas. O autor realiza uma constante intertextualidade, sendo necessário ao leitor acionar, tanto quanto possível, todo o rol de conhecimento armazenado pela tradição literária. Há contatos entre esse texto e os escritos de Da Vinci, Borges, Lewis Carroll, Poe, Kafka, Baudelaire, Rimbaud, Henriqueta Lisboa. No entanto, esse contato é dúbio. Ao mesmo tempo em que ele diz respeito à tradição, também a satiriza em linguagem popular, em muitos casos recorrendo à transcriação. Alguns exemplos disso podem ser localizados nos trechos:

Quando escrevia Mon Coeur Mis à Nu (isto é: Meu Coração Pelado), Baudelaire estava lendo a História, de Herôdotos, especialmente o seguinte trecho: (...) Gregório Inklame era doutor em microbiologia pela afamada Universidade Federal de Talsebácea e ensinava biologia aos microorganismos que lhe freqüentavam as aulas. Seu uniforme constava de um camisolão esverdeado, duas asas acinzentadas e quatro pares de patas finas dispostas alternadamente ao longo do carnil e presas com alfinetes de fraldas (que são maiores que os menores).”

Esta multiplicidade de gêneros que simultaneamente surgem na obra resulta num complexo processo narrativo. Tal polifonia remete à carnavalização literária, discutida pelo russo Mikhail Bakhtin em seus estudos sobre Rabelais e Dostoiévski.

Sendo peculiaridades dos gêneros cômico-sérios a pluralidade de estilos e a variedade de vozes, em todos esses gêneros elas se caracterizam, segundo Bakhtin, “pela politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico.” Nesse rumo, no Decálogo, encontramos, dentro da Primeira Lei, a seguinte proposição:

“A classe média tem medo da própria sombra. E às avessas, ou seja: a própria sombra tem medo da classe média. Isto é: ’Ele há por aqui Snark!’ Repeti uma vez, coisa que alegrará a mocidade. Ele há por aqui Snark! Com esta já são três – E se o disse três vezes, é verdade!

Quem nasceu para inclame
nunca haverá quem o desmame.
Quem nasceu para inclame
sempre haverá quem o mame.
Quem nasceu para inclame,
nunca mais, repetiu o corvo!

Demonstração

Certo inclame tropeçou na própria sombra e xingou um palavrão. A sombra, que não levava desaforo pra casa, respondeu com um bofetão, que lançou ao chão o parlapatão. Pensam vocês que reagiu o patão? Pois sim, pois não: limitou-se o azarão a esfregar o carão dorido e a sorrir constrangido para a sombra que, em atitude de boxeador amador, esperava alguma reação de lavra do larva. (Quid est demonstrandum)

Corolário

Sombras são metávoras e fice-fersa.”

O autor explica a terminologia utilizada no livro:

O termo inclame passa a designar qualquer indivíduo da classe média. Para mulheres inclames teremos buclame; para homens, penclame; para crianças em geral, criclame; para meninas, ninclame, e, para meninos, chaclame. De modo amplo, e em breve tempo, estes termos deverão substituir os tradicionais conceitos burguês, pequeno-burguês, operário, camponês e proletário; povo, povão, galera e massa; classes A, B1, B2, B3, C, D, etc.

Percebe-se, a partir do trecho destacado, que Nunes enceta uma recriação dos espaços ficcionais, ao entrecruzar a própria escrita com a citação de Carroll e a referência a Poe. Demonstra, neste trecho, forte predileção por trocadilhos, enigmas, charadas e jogos de palavras. As várias vozes reiteram a polifonia do texto e colocam em cena a lógica movediça e híbrida, muitas vezes labiríntica, proposta para a obra. É possível que o trecho corresponda a um diálogo possível entre causa e efeito, vida e morte, nascimento e perecimento, já que, ao menos iconograficamente, é um crânio quem fala. Em seguida nos deparamos com um embate entre um indivíduo e sua sombra, retomando ciclicamente à proposição da lei, ao mesmo tempo em que angaria a participação do leitor na construção dos sentidos metafóricos do texto, em razão da indecidibilidade do discurso.

A classe média é apresentada por tudo que há nela de risível e ridículo. Nunes utiliza-se de todo um arsenal tipicamente carnavalizado para atingir seu objetivo crítico: paródias, degradações, trocadilhos, neologismos, elementos grotescos, inversões, satirizações. O autor coloca na berlinda instituições, pessoas, grupos e hábitos sociais por meio do exemplo moralizante e da ironia. Referindo-se especificamente à iconografia que permeia todo o Decálogo, o autor explicita seu estilo: “(...) fiz as colagens deste livro, (...) grotescas e simplórias, como é apropriado ao meu gosto pelo simples e pelo grotesco.”

O registro iconográfico é extremamente valorizado no Decálogo. Não há uma única página em que não estejam presentes as colagens do autor, não podendo, portanto, serem relegadas à condição de ilustração dispensável no contexto da obra. Certamente há obstáculos em sua descodificação, o que exige do leitor um exercício perseverante, aliado à observação minuciosa e à imaginação crítica. É preciso ressaltar que o autor, ao ilustrar suas afirmativas com imagens, reitera a ambigüidade das verdades que propõe como realidade, convidando o leitor a recriar e reinterpretar esta realidade. Palavra e imagem completam-se, fluidas, ambivalentes, muitas vezes tão enigmáticas quanto é a própria vida. Para Miriam Leite, estudiosa desse tipo de mesclagem discursiva, “o texto verbal e o visual são polissêmicos e complementares, sendo cada um mais adequado a determinadas utilizações.”

Todas as características iconográficas da obra reforçam o discurso carnavalizado de Sebastião Nunes e, aliadas ao código verbal, passam a representar uma forma concreta e reformulada da vida. Bakhtin, referindo-se às manifestações medievais, afirmou que

durante o carnaval é a própria vida que representa e interpreta (sem cenário, sem palco, sem atores, sem espectadores, ou seja, sem os atributos específicos a todo espetáculo teatral) uma outra forma livre de sua realização, isto é, o seu próprio renascimento e renovação sobre melhores princípios.

Ao contrário dos ritos oficiais, o carnaval libera os homens temporariamente das verdades dominantes e do regime em vigor, abolindo as hierarquias e regras sociais.

Opondo-se à perpetuação das formas rígidas, o ritual carnavalesco de ontem e de hoje aponta para o futuro e sua incompletude, que parece ser o plano de Nunes. Nessa perspectiva, poderíamos dizer que o Decálogo da classe média cumpre uma importante função textual e social, na medida em que desenvolve críticas bem-humoradas, mas nem por isso menos mordazes, aos hábitos lingüísticos e científicos da sociedade contemporânea. Ao se realizar, essa proposta narrativa também contribui para que se desenvolva um estilo de vida e de texto menos parlapatão ou azarão – algo que seja mais crítico, irreverente e lírico.

Notas

FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2000.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2º ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.p.523.
NUNES, Sebastião. Decálogo da Classe Média. Sabará: Dubolso, 1998.p 5.
NUNES, Sebastião, op. cit. p.4.
BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. São Paulo: Ed. da Unicamp, 1996.p.95.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.p. 19.
BERGSON, Henri, op. cit. p.66.
BERGSON, Henri, op. cit. p.68.
NUNES, Sebastião, op. cit. p.1.
BRAIT, Beth. op. cit, p.38.
NUNES, Sebastião, op. cit.p.13.
NUNES, Sebastião, op. cit.p.41.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.p.93.
NUNES, Sebastião, op. cit.pp.10-11.
NUNES, Sebastião, op. cit.p.7.
NUNES, Sebastião, op. cit.p.6.
LEITE, Míriam L. Moreira. Texto Visual e texto verbal. In: Desafios da Imagem. Campinas: Papirus, 1998.p.43.
BAKHTIN, Mikhail A cultura popular na idade média e no renascimento – O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1997.p.7

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