Imagem, performance e texto na videopoesia

Adriana Alberto Fraga

A explosão do vídeo cassete no Brasil deu-se no início da década de 80, como um meio de transporte de imagens que se associava à televisão e ao cinema. Ele foi responsável por significante mudança dos costumes familiares, redimensionando a convivência doméstica. Desde seu advento, passando pelos mais diferentes usos, além de ser apoio tecnológico ao cinema, o vídeo é veículo de educação, informação e memória. Paralelamente a essas experiências, ocorreram diversas outras, destinadas a explorar esse veículo de imagem, aparecendo assim formas criativas e inovadoras de utilização dessa tecnologia dentro do contexto social: nasce aí a vídeo-arte.

Cândido de Almeida, em seu livro O que é vídeo , relaciona três formas de manifestação da vídeo-arte: a primeira seria o programa em vídeo simples, a gravação em VT de um conjunto de sons e imagens dentro de uma linha conceitual formando uma obra, reproduzível posteriormente em televisores. Esse gênero não faria uso de elementos acessórios, a obra consistiria no programa em si. Apesar de parecer bastante simples, uma forte característica dessa linha é o uso de recursos eletrônicos e equipamentos geradores de efeitos. Os artistas que trabalham com essa linha estão sempre em busca de novas tecnologias, fazendo uso de manipulação de imagens, variações cromáticas e outros recursos que permitem uma nova leitura na tela.

A segunda forma da vídeo-arte seriam as instalações que consistem na inserção de um ou mais aparelhos de televisão, em determinadas situações ou acoplados a outros materiais, criando um espaço cênico dentro do qual serão exibidos os programas. Segundo Cândido, a instalação enquanto categoria da vídeo-arte apresenta uma particularidade interessante: o televisor ganha a dimensão de protagonista, abandonando a mera condição de equipamento transmissor de imagens. Através de sua participação cênica, busca-se humanizá-lo em uma concepção mais ampla, fazendo com que ele alcance uma espécie de existência própria.

A terceira variante dessa manifestação artística é a performance. A performance em si, enquanto meio de expressão artística isolada, consiste na utilização do próprio corpo humano como veículo condutor do processo de se construir o objeto artístico. Na vídeo-arte, a performance consiste na associação da figura humana e do televisor como suportes para a criação. Dentro desse quadro, interagem corpo e matéria, buscando a representação de propostas as mais variadas. O trabalho da performance é basicamente cênico e espetacular. Cândido acredita que, na performance, é possível detectar, de acordo com a obra, a presença de fragmentos de poesia, teatro, literatura, cinema, mímica e música, que são as partes perceptíveis de um universo cultural mais amplo.

Quando pensamos em poesia, remetemo-nos à idéia clássica de um livro grosso, cheio de versos, rimas e métricas que certamente nos levariam a uma viagem fora do nosso universo cotidiano. Mas a poesia assumiu novas características e, com o tempo, tornou-se menos rígida e mais acessível às pessoas que não fazem parte da alta cultura letrada. Sendo o videopoema a fusão da poesia e do vídeo, há um deslocamento da poesia, de sua forma canônica de veiculação - o livro - assim como o vídeo perde seu caráter de produto acabado, pois está aberto a interpretações.

Falar de vídeo hoje significa colocar-se, antes de mais nada, fora de qualquer território institucionalizado. Trata-se de enfrentar o desafio e as resistências de um objeto híbrido, fundamentalmente impuro, de identidades múltiplas, que tende a se dissolver camaleonicamente em outros objetos ou a incorporar seus modos de constituição.

Nesse sentido inaugura-se uma nova estética, a partir da integração do audiovisual com a palavra escrita, formando um produto híbrido em que a videopoesia pode ser vista como forma de trazer a literatura para outros ambientes menos literários, ou de aproximar a literatura da realidade tecnológica em que vivemos.

O poema agora tem movimento e tempo; e o poema é muito além, tem múltiplas formas de interação com o usuário, muitas direções a seguir no seu movimento, ele segue impresso, móvel, visual, sonoro...Mas ele é pleno para se representar numa nova dimensão de exploração.

A partir da Semana de Arte Moderna de 1922, a poesia saiu de seu casulo para ganhar novas formas e contextos, inclusive, apropriando-se da linguagem coloquial. Hoje se faz poesia de tudo, com tudo e para todos. Os artistas buscam novas formas de contextualizar sua poesia nesse mundo tecnológico e voltado para a automatização, tendo em vista a assimilação instantânea das coisas.

A poesia, na atualidade, está sendo inserida em novos meios culturais através de formas diferentes de expressão. Uma dessas formas é a videopoesia que, explorando os recursos do vídeo e da televisão, compõe na tela o objeto poético. O mais interessante desse processo é que a poesia vem novamente romper, como na Semana de 22, com o padrão estético vigente. O videotexto não é formado apenas por rimas ou palavras embaralhadas eletronicamente que, ao sabor do acaso, formam o poema, embora numa primeira análise, nem sempre se perceba o que de literário ele possui: os recursos visuais e sonoros que atuam como suporte do objeto poético, muitas vezes camuflam a poesia existente nele, levando os desavisados a não mergulharem na subjetividade da obra. Então, pode-se perguntar: como é o fazer poético no vídeo? Como é a relação desse meio de expressão visual com a literatura?

As gerações do final do século XX são muito estimuladas visualmente: além da televisão, o cinema, o vídeo e a Internet dão ao sujeito uma noção de espaço bem mais ampla e complexa daquela que havia no início do século. Essa estimulação visual abre caminho para que novas formas de expressão da arte, que antes eram realizadas em caráter alternativo e muitas vezes experimental, apareçam nos meios culturais. Embora ainda não exista um público formado para receber essa nova proposta estética, ele já se encontra em andamento, principalmente nos meios acadêmicos onde, a cada dia, vemos o crescente interesse por temas ligados às tecnologias do cinema, do vídeo e da informática. Observa-se também que os artistas contemporâneos já buscam formas inusitadas de expressar sua obra, seja através de poemas gravados em CD-ROM ou de músicas editadas em livros requintados. Exemplos disso são a poetisa Adélia Prado e a cantora Marisa Monte: a primeira editou suas poesias em um CD-ROM tal como a segunda publicou suas letras de músicas em um livro. Esse hibridismo das artes contemporâneas contribui profundamente para a modificação da literatura hoje.

Percebe-se que o público para quem a videopoesia se volta atualmente é culto e de alto nível social, o que a forma um objeto elitizado. Percebe-se também o difícil acesso a essa arte, não no sentido de sua produção, mas de sua aquisição para ser consumida, como um livro que se compra na livraria. A videopoesia ainda é um produto cercado de alta proteção por seus produtores. A primeira impressão que temos é a de que os videomarkers fazem a videopoesia para eles próprios, como se estivessem preocupados com um produto ainda frágil. Assim, liberam o acesso à videopoesia apenas em mostras específicas de cinema e vídeo ou pela Internet, em versões incompletas e fragmentadas. Também não conseguiram o apoio necessário no meio literário para divulgar o novo gênero poético, representado pela videopoesia.

Através da análise dos videopoemas reunidos para esta pesquisa (If e Cadê o tempo de Aggêo Simões, videomaker de Belo Horizonte; Quarteto de Sopros, Pepsi Machine e País, de Álvaro Andrade, videomaker também de Belo Horizonte) o que percebi é que, apesar da videopoesia ser feita para ser propagada em tecnologias altamente consumidas pela massa, como o vídeo e a televisão, a sua forma estética exige do receptor uma cultura mais elaborada, como saber a língua inglesa, ou outras menos freqüentes em nosso meio, como as línguas japonesa e italiana .

O uso de línguas de utilização restrita na comunidade ocidental, torna-se um recurso precioso com o objetivo de envolver o “leitor-espectador”. Ao ler frases incompreensíveis, que se alternam com o português, na tentativa de decifrar o texto, o receptor busca nas imagens e nos sons o que ficou lingüisticamente incompreensível, aumentando sua concentração no objeto e anunciando uma nova estética do vídeo.

Álvaro de Andrade, videomaker mineiro, através de sua experiência na criação de vídeos, traçou algumas características da videopoesia: do que o vídeo pode proporcionar à poesia. O movimento incorporado ao texto, segundo ele, é a principal contribuição que a linguagem do vídeo traz para a poesia, pois possibilita a condução do sentido da palavra, amplia a noção de tempo dos vocábulos e quebra a linearidade da leitura. O videopoema, por ser um objeto que exige reflexão durante a leitura torna, a velocidade de rotação mais lenta que aquela usualmente encontrada em gravações de vídeos.

Outra característica interessante da videopoesia é a repetição das palavras na tela, fato que permite um novo exame de texto e sistematiza a necessidade de se ler um bom poema mais de uma vez e de variadas maneiras. Uma diferença do poema em vídeo relativamente à palavra impressa ou falada é que ele permite a mudança súbita de estado dos textos, através de movimentos rápidos. Os textos são sucintos e oferecem espacialidade aos poemas, pois suas palavras se tornam objetos tal como uma imagem. Além disso, a verticalidade do texto dá lugar à sua horizontalidade e os elementos de ligação são substituídos por movimentos e posicionamentos dos vocábulos na tela. Assim como a poesia concreta, a forma é um elemento muito importante na construção do videopoema. Todas essas características levam a outra: o ludismo. Devido à capacidade de metamorfose, superposição, associação de imagens e sons, o videopoema é extremamente lúdico: a movimentação do texto na tela, coisa que o texto impresso não nos permite, ou a leitura partindo de vários pontos, possibilitam ao poeta brincar com as formas e as múltiplas possibilidades de explorar a aptidão visual da poesia.

O videopoema If explora vários recursos literários a partir da tela. A proposta do videomaker Aggêo Simões foi construiu um videohaikai, em que predominam as rimas e a cadência dos versos e aproximam-no da literatura, ao mesmo tempo em que a linguagem do vídeo se junta para formar o sentido. A anamorfose, sobreposição de imagens, performance, frases aleatórias e aceleração e lentidão das imagens levam o “leitor-espectador” a sensações inéditas na leitura dos poemas. Em Cadê o tempo, que discute a relativização do tempo, em todo o poema ocorre sobreposição de significante e significado. Exemplificando: aparece na tela a palavra “lento”, cheia de linhas como se fossem rugas (que é o efeito mais marcante do tempo em nosso corpo), em velocidade reduzida, acompanhada de imagens que remetem à lentidão do tempo, como pessoas idosas de uma cidadezinha do interior, olhando o movimento do lugarejo pela janela de sua casa. O efeito de sobrepor vários significados para um mesmo significante a uma exacerbação do conceito de lentidão que faz o “leitor-espectador” sentir, e não imaginar, como se dá a noção de tempo. Nos poemas Pespi Machine , País e Quarteto de sopros , de Álvaro Andrade Garcia, o primeiro impacto que temos é o da perda da verticalização do texto: a reação é ficar procurando na tela o lugar de onde vão surgir as palavras, e o que virá em seguida, gerando uma expectativa que não ocorre na leitura da poesia impressa. Uma outra sensação de estranhamento dá-se devido à ausência de som: alguns videopoemas oferecem ao leitor um texto na tela sem nenhuma referência auditiva, o que incomoda o receptor, que por outro lado, não se incomoda com a leitura silenciosa que se faz dos poemas impressos em livro. Talvez pela experiência cotidiana, em que a televisão é um meio que utiliza intensamente a linguagem oral, esperamos que o videopoema siga o mesmo modelo.

Desde a década de 60 já existiam trabalhos que relacionavam arte e vídeo. Apesar disso, observamos que nunca a apropriação de uma pela outra foi tão intensa como no final desse século. A literatura, a música, o teatro e o cinema absorvem, a cada dia, novos recursos tecnológicos do vídeo e da informática. Como resultado disso, vemos crescer assustadoramente o hibridismo entre as artes, perdendo-se a rigidez da técnica e do estilo.

Na literatura, as mudanças decorrentes desse hibridismo, apesar de tímidas e isoladas, mostram a videopoesia como nova forma de expressão literária que vem ganhando espaço e trazendo novas propostas. Não podemos negar que essas mudanças são o reflexo de uma geração de fim de século que tem como característica o fácil acesso ao avanço tecnológico. Esse avanço permite ao ser humano um contato prematuro com meios que eram complexos e fechados. A democratização da tecnologia, como a da Internet, criou uma geração de leitores e produtores de informação que enxergam o mundo de outra maneira e, conseqüentemente, são inovadores na forma de construir e expressar sua arte e sua cultura.

NOTAS

ALMEIDA, 1985
MACHADO, 1996.p.46.
GARCIA, 1998.
Anexo 4
Anexo 5
SIMOES,1998.
Anexo 1
Anexo 2
Anexo 3
ANEXOS

ANEXO 1
Pepsi Machine: (PC 486, 1991, exibição em vídeo)
Texto, roteiro,animação: Álvaro Andrade Garcia
Trilha sonora: Luis Eduardo Sá
ANEXO 2

País (PC 386, 1990, exibição em vídeo-projetor, original sem áudio)
Textos: Nicoletta Padovani
Ilustrações: Marco Túlio Resende
Roteiro e seleção de textos: Álvaro Andrade Garcia
Animação: Aggêo Simões

ANEXO 3
Quarteto de sopros (PC XT, 1987, exibição em vídeo-projetor, original sem áudio)
Texto, roteiro e animação: Álvaro Andrade Garcia, Delfim Afonso Jr., Roberto Barros de Carvalho.

ANEXO 4
Videopoema If
(Aggêo Simões)

If you open your eyes
and don’t see anything
maybe you’re still sleeping
and have no dreams

If you open your eyes
and see a woman stand by
maybe you’re engaged
or maybe you have died

If you sharpen your ears
and don’t hear any noise
maybe you are a song
of someone else’s choice

If you open your mouth
and can’t say anything
maybe you are a sound
of someone else’s scream

If you sharpen your nose
and don’t smell any rose
maybe you have a poetry
and your garden has been sold

If you sharpen you taste
and fell dust in your month
you have a foot in the grave
or got a kiss from the ground

If you open your mind
And there’s nothing over there
Try to find what
What you seek
Inside the pillow
Under the bed.

* Todos os ideogramas acima se referem às palavras em negrito, nos versos imediatamente subseqüentes a eles.

ANEXO 5
Videopoema País
(Álvaro Andrade)

No corredor ao lado
Longo como o instante paralelo (quanto l’istante parallelo)
Se estende o presente falhado nunca tornado verdade

Teseo mio eroe prigioniero
Teseu meu herói prisioneiro

Del tuo corporeo sedile
Do teu corpóreo assento

Oh teseu

Le tue gambe
As tuas pernas

Il tuo sesso
O teu sexo

Divenuti sgabello
Tornaram-se banquinho

Di tue gambe
De tuas pernas

Tuo sesso
Teu sexo

Oh sole, tieni la tua larga mano calda sopra il mio viso
Ó sol, mantenha a tua grande mão quente sobre o meu rosto. (ficarei imóvel na tua mão)

Rendimi chiara pietra
Devolva-me a pedra clara

Lo spazio si é fatto carico di tue mani e di diato
O espaço se encheu de tuas mãos e de respiro

Trasparenze
Transparências

Coincidenza assoluta delle ´ore aperte”in agguato
Coincidência absoluta das “oras abertas” (cobertas em cilada)

Percorrono domesticati amori sempre lo stesso sentiero
Domesticados amores percorrem sempre o mesmo caminho

Della morte mi vendico sostenendo-se il nascere
Me vingo da morte sustentando o nascer

Quando tenerissima esplode in vita entrando in scena graziosamente inavvertita
Quando tenríssima explode em vida entrando em cena graciosamente inadvertida.

ANEXO 6
Cadê o tempo
(Aggêo Simões/ Mônica Toledo)

Cadê o tempo
?
Que tempo e esse que passa pelo sinal
Cinza
Lento
Pensamento
.
:
;
?
!
...

Noção de tempo:
Uma fase depois da outra
e assim ate o fim

Posso te fazer uma pergunta?
Pode.
como se sente o tempo?
As idas são mais longas que as voltas.

Preencher os espaços de tempo.

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA,Cândido José Menezes de. O que é vídeo. São Paulo: Nova Cultura. 1985.
DORFLES, Gillo. O Devir das Artes. Trad. Pier Luigi Cabra. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1992.
GARCIA,Álvaro Andrade. Os caminhos da informação Digital. www.ciclope.com.br/interarte
GARCIA, Álvaro Andrade. Poesia e tecnologia. www.ciclope.com.br/interarte
GARCIA, Álvaro Andrade. Vídeo Interativo. www.ciclope.com.br/interarte
GARCIA, Álvaro Andrade. Videopoesia. www.ciclope.com.br/interarte
GARCIA, Álvaro Andrade. Multipoesia – um nome provisório enquanto surge o novo. www.ciclope.com.br/interarte
GARCIA, Álvaro Andrade. Multimídia, Imaginação & poesia Zen. www.ciclope.com.br/interarte
MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.
MACHADO, Arlindo. O diálogo entre cinema e vídeo. Revista da USP, São Paulo, [s.n.],p.124-135,[s.d.]
MENEZES, Philadelpho. Poética e visualidade. Campinas: Editora da UNICAMP, 1991.
OMAR, Arthur. Cinema, vídeo e tecnologias digitais: as questões do artista. Revista da USP, São Paulo, [s. n], p.138-145,[s.d.]

VIDEOGRAFIA

IF. Direção de Aggêo Simões, Belo Horizonte: Zootrópio Produções. 1998. color
CADÊ O TEMPO. Direção de Aggêo Simões, Belo Horizonte: Zootrópio Produções. [s.d.]
QUARTETO DE SOPROS. Direção de Álvaro de Andrade Garcia, Belo Horizonte: Cíclope Produções. 1987.
PESPI MACHINE . Direção de Álvaro de Andrade Garcia, Belo Horizonte: Cíclope Produções. 1991.
PAÍS. Direção de Álvaro de Andrade Garcia, Belo Horizonte: Cíclope Produções. 1990.