AS IMAGENS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NAS NARRATIVAS LITERÁRIA E CINEMATOGRÁFICA

Angelina Maria Ferreira de Castro[1]

Criar um ser artificial foi o sonho do homem desde os primórdios da ciência. Não só no início da era moderna quando nossos ancestrais criaram as primeiras máquinas pensantes, monstros primitivos que sabiam jogar xadrez. Vejam aonde chegamos! O ser artificial é hoje uma realidade, um simulacro perfeito, com membros articulados e provido de reações humanas. Agora eu proponho que construamos um Meca racional com uma resposta neuronal. O que eu sugiro é que o amor seja a chave com a qual ele irá adquirir uma subconsciência jamais alcançada, um mundo interior de intuição, de raciocínio próprio, de sonho.

(Filme IA.Inteligência artificial)
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A inteligência artificial, como se pode depreender do trecho retirado do filme AI. Inteligência artificial, de Steven Spielberg, já existe no imaginário popular desde os primórdios da humanidade. Criar um ser à sua imagem e semelhança sempre foi uma aspiração do homem. Sonhando, ele teceu seus mitos que, alimentando sua imaginação, instigaram-no à criatividade por meio da arte e da ciência. A literatura oral - fonte inesgotável de mitos, lendas e fábulas - efetuou a propagação de histórias que expressavam esse desejo do homem de construir artefatos que o representassem, histórias que, mais tarde, foram registradas com a descoberta da escrita e que, um pouco adiante, a ciência ajudou a materializar. A Revolução Industrial, no século XIX, foi a responsável pelo enriquecimento do imaginário social, oferecendo aos escritores, por meio do desenvolvimento técnico e científico, os recursos de que necessitavam para a criação literária.

Muito antes do cinema, portanto, a literatura, segundo Pereira, já alimentava o olhar do leitor com inúmeras obras tematizando a criação. No Ocidente, além dos textos genesíacos dos gregos, da Bíblia e da Torah, as figuras de sereias, golems, ciclopes, centauros e górgonas recolocam o tema da criação de seres híbridos, questionando a imagem puramente humana e, portanto, lembrando a possibilidade de seu desaparecimento.

Assim, além dos seres artificiais criados por Mary Shelley, H.G. Wells, dentre outros escritores, especialmente contistas dedicaram-se, desde o século XIX, a construir suas narrativas, utilizando-se dos recursos da inteligência artificial para discutir temas importantes para a humanidade. Mas foi só a partir de um artigo escrito em 1949 pelo matemático britânico Alan Turing (1912-1958), considerado um dos pais da moderna computação - "As máquinas podem pensar?" - que se começou a especular sobre a possível inteligência das máquinas. Ele propôs um experimento chamado de Teste de Turing, um "jogo da imitação" em que uma pessoa conversaria escrevendo por meio de dois terminais com um computador e com um humano. Caso essa pessoa não conseguisse, depois de alguns minutos, descobrir qual dos dois interlocutores era a máquina, então esta poderia ser considerada inteligente.

A inteligência artificial não ficou, portanto, restrita à ficção, sendo a preocupação com a construção de máquinas inteligentes também uma constante desde as mais remotas eras. Leonardo da Vinci, por exemplo, dentre muitos outros inventores, já construía autômatos inteligentes. No século XVIII (apogeu dessas criações), foram construídas várias dessas máquinas, dentre elas, podemos citar a máquina de falar, que se tornou uma das bases da ciência fonética, e a máquina de jogar xadrez - ambas construídas pelo Barão húngaro Wolfgang von Kempelen. Desejando impressionar a Imperatriz Maria Tereza da Áustria, ele projetou uma máquina que sabia pensar: um andróide, vestido de turco, fazia as jogadas e era imbatível na arte do xadrez. Na verdade, o mecanismo não passava de um truque ilusionista, já que as jogadas eram realizadas por um anão, o cérebro que se escondia dentro do aparelho. Em 1966, essa idéia de Kempelen tornou-se realidade: o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov sofreu sua primeira derrota no jogo contra o computador Deep Blue, na Filadélfia.

Monteiro Lobato e Steven Spielberg, com suas obras A chave do tamanho e Inteligência artificial, abriram um espaço para a discussão de temas transversais que emergiam, desde o início do século XX, no nosso complexo sistema social, introduzindo paradigmas ético-estéticos, veiculadores de novas formas de se pensar e expressar o conhecimento.

Influenciado pelas teorias cientificistas - evolucionismo, positivismo e naturalismo - em voga na Europa e importadas para o Brasil no início do século XX, Monteiro Lobato, nietzschiano convicto, não ignorava a função do artista como mediador da realidade. Pessimista com relação à situação do mundo devido à Segunda Guerra Mundial e observando agora o progresso, que tanto exaltara, por outro ângulo, ele resolve interferir no processo. Para tanto, escreve a obra A chave do tamanho, utilizando-se, dentre outros procedimentos, de dois recursos importantes tanto para a construção da narrativa como para a discussão de temas relevantes para a sua época.

O primeiro procedimento diz respeito à utilização do recurso da inteligência artificial, e o segundo, refere-se à utilização de uma "situação de carnaval": subvertendo, na história, uma estrutura social reinante, a narrativa experimenta uma idéia filosófica e verifica o comportamento das personagens diante dela, deixando, no final, o texto com um efeito interrogativo. A humanidade é reduzida drasticamente graças a um gesto inconseqüente da Emília e, agora, nus (clara referência ao despojamento das convenções e da moral), os homens têm que buscar nova alternativa para se adaptarem a um ambiente biológico hostil. A narrativa, dessa forma, invertendo os seus aspectos convencionais como o tempo e o espaço e incluindo personagens portadores de inteligência artificial - recurso de que o escritor é pioneiro na literatura infantil brasileira - oferece, por meio do "apequenamento", uma "nova ordem" para que os personagens possam vivenciar situações enriquecedoras e apreender os novos valores éticos delas decorrentes. Dentre esses valores, o relativismo é apresentado como uma nova forma de se pensar a realidade, presa, até então, a um ponto de vista autoritário e absolutista.

Sendo precursor, no Brasil, da discussão sobre inteligência artificial na literatura infantil, Monteiro Lobato trabalha na obra com a tecnologia e com os objetos técnicos disponíveis no momento, inclusive, fazendo experiências com o processo cognitivo de Emília e Visconde. Ao permitir a intervenção da boneca na humanidade, quando esta, ao procurar uma solução para a Guerra, move a chave que regula o tamanho dos homens, Monteiro Lobato parece estar propondo a utilização da nanotecnologia avant la lettre. O título da obra também parece sugerir tal proposta: assim como o tamanho poderia ser, na história, a chave que abriria as portas para uma visão revolucionária da vida, a nanotecnologia, do ponto de vista científico, também foi a chave que abriu as portas para inúmeras conquistas tecnológicas. Sob essa perspectiva - o mundo em A chave do tamanho foi miniaturizado - o autor instaura um debate sobre os benefícios e riscos da tecnologia e do conhecimento, anunciando a possibilidade de se criar todo um mundo de pensamento a partir da situação do apequenamento dos seres humanos.

Podemos perceber, ainda, que a filosofia nanotecnológica de Monteiro Lobato perpassa toda a obra, mas pode ser, especificamente, confrontada no capítulo XX, intitulado "A cidade do balde". A experiência de um novo núcleo civilizatório vai sendo exposta e discutida em um diálogo travado entre o antropólogo Dr. Barnes, Emília e Visconde. Nessa interlocução, são apontados os novos valores e hábitos vivenciais da comunidade, enfim, as novas regras que deverão reger as relações sociais que estão sendo tecidas pelos homens em sua interação consigo mesmos e com o novo contexto. Por meio das mais variadas atividades adaptativas realizadas pelo grupo, o Dr. Barnes esperava que os homens não apenas subsistissem, mas que pudessem criar uma nova civilização muito mais agradável que a velha sem os horrores da desigualdade social, da fome e das inúteis complicações criadas pelos inventos mecânicos. Para ele, a nova civilização, apequenada, estava livre do fogo e do ferro, os responsáveis pelo caminho errado que a humanidade tomara.

Em toda a obra, há uma observação constante do envolvimento de Emília com suas experiências cognitivas, sendo sua inteligência posta à prova. O ambiente é estranho, o choque visível e, em todas as situações, ela cria e inova, passando da percepção para a cognição e entendendo a realidade de forma revolucionária: ela compara, seleciona, analisa, reflete, faz cálculos e chega a conclusões satisfatórias a respeito da realidade que a cerca. Nesse processo, a tecnologia está sempre presente, auxiliando-a na experiência: alguns insetos lhe servem de transporte, outros de ponte e elementos naturais como espinhos e chumaços de algodão são usados como defesa contra animais.

Já o filme Inteligência artificial foi a concretização de um sonho, acalentado por Stanley Kubrick, durante dezenove anos. Comovido com o conto do inglês Brian Aldiss, "Superbrinquedos duram o verão todo", o cineasta iniciou com o escritor um longo debate (1979 a 1999) que culminou na produção de um roteiro para um filme de ficção científica com características de conto de fada. Depois da morte de Kubrick, em 1999, Aldiss escreveu mais dois contos que, dando continuidade à história de David, foram incluídos na obra Superbrinquedos duram o verão todo e outros contos de um tempo futuro. Steven Spielberg, por meio de um acordo amigável com a Warner Brothers, adquiriu as três histórias e filmou-as como Kubrick desejara fazê-lo, programando o lançamento do filme, muito apropriadamente, para 2001.

As idéias do cientista Alan Turing sobre uma máquina universal capaz de realizar qualquer tarefa (desde que bem instruída para tal), assim como a hipótese tomada da neurociência de que emoções e sentimentos são chaves no funcionamento da consciência e da racionalidade dos seres humanos, servem, no filme, de substrato à proposta do professor Hobby, diretor da empresa Cybertronics, de New Jersey, para criar David, o primeiro protótipo de uma série de robôs que traziam em sua programação o amor como chave para a aquisição do mundo subconsciente, pleno de metáforas, intuição, raciocínio próprio e sonho. David deseja transformar-se, como Pinóquio, num menino de verdade. Para realizar seu sonho, como Emília, deve pôr à prova sua capacidade cognitiva.

Do ponto de vista ético, a criação de dois mundos distintos - um após o derretimento das calotas polares e o outro depois do congelamento que durou dois mil anos - insere-nos num ambiente hipertextual com interface em duas dimensões da realidade (processo bem semelhante àquele utilizado por Monteiro Lobato em A chave do tamanho), oferecendo-nos a oportunidade de fazer uma viagem fantástica a mundos virtuais e de experimentar situações e códigos diferentes que podem servir para recriarmos a nossa realidade.

Do ponto de vista estético, o filme apresenta um visual exótico bastante ousado em suas inovações técnicas. Para criar um mundo completamente artificial, as imagens precisaram, antes, ser projetadas por meio de fotografias, desenhos, maquetes e programas de computador para, depois, serem articuladas e filmadas, tendo como objetivo maior a obtenção dos efeitos especiais que puderam tornar críveis os mundos narrados. A inteligência artificial ganha destaque nessa película. Os robôs, de completamente mecânicos, passam por aqueles que foram transformados por meio de maquiagens e próteses, até os construídos por animação computadorizada.

O desenvolvimento tecnocientífico, a partir da segunda metade do século XX, desafia a concepção do homem da modernidade. A ciência e a filosofia modernas conceberam homens, animais e máquinas como seres de naturezas distintas que não podiam se misturar. O filme Inteligência artificial trata dessa questão: a transgressão das fronteiras que separam o natural do artificial. Apesar de todo o avanço tecnológico alcançado pela sociedade do futuro, o homem não soube lidar com esse tipo de progresso, o que resultou no desequilíbrio entre esses universos devido ao excesso de produção de robôs e artefatos tecnológicos e, ao mesmo tempo, pela indiferença a uma ética que deveria reger as alteridades.

David, protagonista da história, juntamente com seus companheiros Gigolô Joe, garoto de programa, e Teddy, o superbrinquedo animado por computador, foram escolhidos para fazer parte dessa rede de personagens que experimentam suas inteligências artificiais na sua relação com o meio em que estão inseridos. O garoto de programa e o ursinho é que vão ajudar David em sua epopéia pela vida real. Juntos, esses coletivos pensantes, ao vivenciarem os fatos, vão procurando entender a realidade circundante por meio dos recursos cognitivos de que dispõem, superando obstáculos e seus próprios limites. Dentre eles, apenas o garoto transgride o código de sua programação, resistindo à idéia de ser andróide e partindo para a conquista de sua humanidade. O desejo de ultrapassar a fronteira entre o humano e o maquínico começa no exato momento em que ele ouve a história de Pinóquio. Desde então, tornar-se um menino de verdade transformou-se em sua obsessão. Sua resistência supera a dos seres humanos: dois mil anos após o descongelamento, ele sobrevive, enquanto o Homo sapiens está extinto.

Após a análise comparativa dos sistemas semióticos literatura e cinema, chegou-se à conclusão de que o desenvolvimento tecnológico, instaurado a partir do século XIX e acelerado na segunda metade do século XX, pode ter provocado transformações no aparelho perceptivo do homem, levando-o a inaugurar uma nova ordem na ficção e criar uma outra estética, transgredindo, assim, as formas tradicionais de narrar e de representar o mundo. Ficaram impressas, na narrativa, as marcas desse processo, sendo definitivamente alterados os modos de produção e recepção dos textos desde a invenção da imprensa, passando pela descoberta da fotografia e do cinema até alcançar a era do computador. E a imagem, como não poderia deixar de ser, acompanhou de perto essa evolução que, de artesanal, está chegando, hoje, à sua potência máxima de recurso digital, sujeito a constante metamorfose.

Se a imagem técnica revolucionou as formas de se produzir e receber os textos, a leitura das narrativas literária e cinematográfica também foi revolucionária na medida em que nos permitiu, por meio da hipertextualidade, participar da infinita rede de significados que se encontra em estado potencial nas obras analisadas. Esperamos que nossa leitura contribua para re-significar a imagem dos leitores contemporâneos a respeito das obras A chave do tamanho e Inteligência artificial. E que, sobretudo, nossa análise contribua para difundir a importância das obras de Monteiro Lobato no cenário contemporâneo da Literatura Brasileira e da literatura produzida num mundo globalizado, hipermidiático e transdisciplinar.

Notas:

[1] Mestre em Letras: Literatura e Outros Sistemas Semióticos (Área de concentração: Teoria Literária), 2007.
[2] Monteiro Lobato trocou correspondência durante quarenta anos com seu amigo Godofredo Rangel. Em várias cartas, o escritor afirma sua adesão às idéias do filósofo alemão Friedrich Nietzsche de cuja obra foi tradutor. Leitor assíduo de Nietzsche, Monteiro Lobato acreditava que não existe uma verdade e, sim, diferentes perspectivas por meio das quais se pode examinar o mundo.

Referências Bibliográficas

ALDISS, Brian. Superbrinquedos duram o verão todo: e outros contos de um tempo futuro. Trad. Beth Vieira. São Paulo: Companhia das letras, 2001. p. 7-20.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. p.101-180.
LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944. p. 31,37,109,159. _________ A chave do tamanho. São Paulo. Brasiliense, 2005.
LÖHR, Robert. A máquina de xadrez. Trad. André Del Monte e Kristina Michahelles. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007. p. 395-403.
PEREIRA, Maria Antonieta. A criação pelo olhar. In: Revista de Estudos literários, v. 3. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 1995. p. 179.
WHITBY, Blay. Inteligência artificial: um guia para iniciantes. Trad. Claudio Blanc. São Paulo: Madras, 2004. p. 29-33.
Filmografia: AI.Inteligência artificial. Direção Steven Spielberg, 2001.