Fotos realizadas durante o evento


SABER E FAZER O GRITO:
a “presentação” do “Manifesto ecológico” entre alunos do ensino fundamental



Sandro Henrique de Souza

Professor da rede pública de Ribeirão das Neves. Licenciado em língua portuguesa pela Faculdade de Letras da UFMG, concluinte do bacharelado em língua portuguesa, com formação complementar em Artes. Aluno do Teatro Universitário da UFMG..



Ê... ô... atrelem os bois!
Sinta o vento traga a chuva sobre nós
Vamos colher as espigas douradas!
Cantiga anônima presente em várias idiomas

“10- o homem deve ser educado desde a infância para observar, respeitar e compreender os animais”
Príncipio da Declaração Universal dos Direitos dos Animais



Sábado, 07 de novembro de 2009: dia do “Festival da primavera” na Escola Municipal Maria Vieira Barbosa, em Ribeirão das Neves, Minas Gerais. Para o evento, organizado pela escola, foram planejadas diversas atrações artísticas. Na pausa entre os turnos da manhã e tarde, todos foram convidados a se dirigirem para a entrada da escola, perto dos banheiros e bebedouros. Lá estavam, interrompendo o caminho, cadeiras e toda parafernália tecnológica que a escola dispunha, como som, microfones e datashow: em poucos minutos iria começar o “Manifesto ecológico”!

O público começa a chegar em várias direções: pelas escadas, pelas laterais, passando pelo espaço que seria tomado pelo Manifesto. Instalado o público, dadas as boas-vindas e as orientações quanto ao espaço da cena, entra, então, uma mensagem em áudio, a faixa “Tridente social”, do cd “O segredo”, da banda evangélica “Fruto sagrado”, que é uma leitura de um dos belos trechos do livro bíblico de Eclesiastes 1:3-6,9,17,18 e 12:1. Paralelamente, são projetadas fotos de satélite do planeta Terra, que é tema nos trechos bíblicos da mensagem inicial. Ouve-se, então, o início de “The Tempest Op.18”, de Tchaikovsky, composto para a peça shakespeareana. As portas dos fundos da passarela são abertas por duas garotas e outras duas estendem pela passarela um longo véu, que em suas ondulações remetem ao movimento do mar. No meio dele, surge um rapaz a olhar os mares com uma luneta, para simbolizar Pero Vaz de Caminha, enquanto isso, são lidos trechos da primeira carta do conquistador português sobre as belezas das terras brasileiras. A beleza do mar é, porém, interrompida por vários meninos lançando sujeira no pátio ao som de trecho da música “Até quando”, da banda Oficina G3: “Humanos que se amam/ Humanos que se espalham/ Humanos que ajuntam/ Humanos que espalham/ Humanos que vendem/ Humanos que compram/ Humanos que pedem/ Humanos que roubam.”

As portas se abrem novamente e entram três jovens vendados e amordaçados. Ao mesmo tempo, duas alunas leem a letra da canção “O grande navio”, de Bia Bedram, presente no livro Folhas verdes. Um deles oferece vendas e mordaças à platéia, que também recebe máscaras hospitalares. Os jovens arramcam as vendas e mordaças e a platéia é interpelada a não aceitar aquelas que forem oferecidas pelos poderosos, para não terem que continuar horrorizadas com epidemias como a da gripe H1N1, que apavorou o mundo em 2009.

As grades de acesso aos banheiros são fechadas vorazmente e três meninos ficam presos atrás delas ao som do canto de pássaros. Leio a “Declaração Universal dos Direitos dos Animais”, também presente em Folhas verdes, fazendo de megafone um cone de sinalização de trânsito, retirado dos materiais das aulas de Educação Física. As grades são abertas e os meninos fogem delas, como rito de libertação dos humanos em relação aos animais e também destes. Anúncios de revistas de diversas lojas começam a ser gritados para a platéia e ao novo abrir das portas uma jovem empurra um carrinho de compras, enchendo-o de sacolas de grifes famosas pelas mãos de pessoas da platéia. Ao fundo são projetadas cenas do curta-metragem “Ilha das flores”, de Jorge Furtado, que exibem uma mulher no supermercado e o estampar de várias marcas sobre a tela. Por fim, a garota do carrinhocompra uma outra jovem semelhante a ela e a coloca no carrinho. Ao lado delas, as recepcionistas do portal empunham cartazes indagando para a platéia qual é o seu preço. Contrastando com o consumismo, o filme “Ilha das flores” exibe também cenas de moradores do lixão, aguardando em fila para comer restos de alimentos.

Após som do canto de pássaros, uma jovem vestida de verde e plantas paira com liberdade pelo espaço, acompanhada pela leitura de outro poema do livro Folhas verdes, “Para o surdo saber que grito”, de Nayahara J. Vieira. Os meninos poluidores a cercam e começam a plastificá-la, ouvem-se, então, as batidas do seu coração diminuírem e o som agudo do aparelho hospitalar anunciar sua morte. Carrego sob o silêncio, a Natureza morta, mostrando-a para os quatro cantos da platéia. Depois de ser deixada atrás do portal, estoura o som da música “Lacrimosa”, da Missa Fúnebre de Mozart, e entra a procissão com um pequeno caixão contendo um galho seco. Debaixo de véus e roupas pretas é encenado o enterro da Natureza. Porém, o canto do coro de todos os meninos e meninas de mãos dadas invoca a chuva, o amor e a unidade entre os humanos. A Natureza volta no carrinho de compras e o seu invólucro é retirado para receber um guarda-chuva que faz chover sobre os presentes, que cantam ainda abraçados: “Amor, amor, amor/ essa mensagem é do amor, reine a paz/ e quebre as barreiras/ nós somos um...” Os jovens da platéia aplaudem de pé com gritos e assobios... adultos choram... As plantas, as águas e os animais agradecem...

O “Manifesto ecológico”, sobre o qual deponho aqui, pode ser entendido como uma performance, modalidade artística polêmica em evidência na contemporaneidade, que pode lançar mão de elementos de várias manifestações artísticas, como teatro, música e artes plásticas, além de diversas mídias. Criei e dirigi em cinco dias a performance para ser realizada por alunos da 5ª série do ensino fundamental (6º ano, na nova organização). Ela se deu por ocasião do tema do livro didático Português: linguagens, de William Roberto Cereja e Tereza Cochar Magalhães, escolhido para os últimos bimestres do ano letivo, o meio ambiente; e pela apropriação e emprego prático do livro Folhas verdes, da linha editorial d' A tela e o texto, de divulgação da leitura com livros ao baixo custo de R$1,99, o qual foi adotado para leitura, estudo individual do aluno e posterior avaliação do bimestre.

No decorrer do ano letivo, as aulas de português se voltaram para a relação entre a língua oral e escrita, sobretudo em relação com outras linguagens. O foco do meu trabalho foi possibilitar aos alunos o estudo da línguagem verbal em conjunto com a linguagem não-verbal nas imagens, filmes, jogos e expressão corporal e oral. Como no ano letivo anterior, seria fundamental concluir o percurso com um trabalho que envolvesse os diversos elementos trabalhados durante o ano letivo. Porém, por causa do atraso no meu planejamento, foi necessário escolher apenas uma turma para preparar a performance durante as aulas, em poucos dias, para garantir a presença de alguns alunos da escola entre as atrações do “Festival da primavera”.

A performance foi estruturada como forma de alcançar em poucos dias um resultado satisfatório sem que demandasse muito tempo dos alunos fora da escola, e de modo que pudessem se sentir confortáveis. Memorizar textos e contracenar exigem habilidades dos alunos que não foram reforçadas durante o ano e que não devem ser feitas sem cuidados profissionais do ensino de teatro, o que acaba gerando apresentações como tentativa tacanha de imitação da televisão, referencial de muitos alunos que nunca puderam assistir a uma apresentação teatral. Nesse sentido, seria preciso uma estrutura em que os jovens estudantes pudessem se expressar corporalmente e vocalmente com liberdade. Decidi, então, inseri-los em um rito, semelhante ao que muitos deles vivenciam nas igrejas, que metaforizasse uma mensagem com o tom próprio da adolescência: o manifesto, a busca de se fazer ouvir.

Poucos meses antes pude ter a experiência de assistir a dois espetáculos do Teatro Oficina, dirigidos por Zé Celso Martinez, que incitaram a criação do “Manifesto”. O Teatro Oficina costuma gerar polêmica entre o público, e muitos poderiam considerar pouco provável que se possa inspirar no seu trabalho para a sala de uma escola pública do ensino fundamental, mas tenho por certo que comi - para usar a idéia antropofágica recorrentemente aludida por Zé Celso - as “óperas-carnavais” do Oficina para gerar o Manifesto. Para citar alguns elementos: o próprio tom crítico, irônico e interpelação da platéia que adotei durante a performance; a forma de uma passarela, pela qual pude ver o público entrar passando por ela e sentar-se em bancos de frente para o outro a se confrontarem. Além disso, pela passarela carnavalesca foi feita a “presentação” - no sentido de se fazer presente, sem o mesmo prefixo de palavras como “retorno”, como diz a Associação Oficina Uzyna Uzona- de um rito, como forma de realizar em cena simbolicamente o que se pode mobilizar interiormente e na prática pelos atores e público. Dessa forma, plastificar a “Natureza” é representar a destruição que os humanos têm feito a ela, e, em seguida, arrancar o envólucro é libertá-la da morte. Assim também, arrancar as vendas é desprender-se das amarras dos que se emudecem e se cegam diante da destruição.

Quanto à criação do Manifesto, é ainda importante destacar que as canções evangélicas foram escolhidas por fazerem parte do universo cultural de Ribeirão das Neves, permitindo identificação mais imediata da mensagem. Além disso, são canções de bandas para o público jovem, que tem em grande parte de suas letras o protesto contra incoerências humanas e injustiças sociais. Por outro lado, as passagens e a procissão dos “performers” pela pista remetem aos cultos católicos, originários da Grécia Antiga. Foram usadas músicas instrumentais que associam sons da natureza, de um cd americano independente de Raymond Scott Woolson, como também músicas clássicas dos compositores eruditos Tchaikovsky e Mozart, revelando que é possível a mistura entre a cultura regional, o popular e o erudito, possibilitando o acesso a obras que dificilmente chegariam aos ouvidos de moradores da periferia, de forma integrada a ela.

Muitos dos presentes no “Festival da Primavera” não quiseram descer para assistir à “presentação” e foi questionado o fato do espaço em que foi feita. O trabalho exigia a ocupação de um espaço alternativo e a “dramaturgia” das ações encenadas foi feita para um espaço específico. Além disso, era importante o deslocamento da platéia de uma zona de conforto para um outro local que se interpunha no meio do seu caminho.

Na sexta-feira seguinte, 13 de novembro, foi feita uma nova “presentação” para outras três turmas da 5ª série. Toda a estrutura foi armada na passagem dos alunos para os bebedouros e banheiros, o que provocou grande agitação entre os alunos, mas que se fez fundamental como forma de ocupação do espaço, tomada de posição e manifestação. Infelizmente, os docentes e alunos de um curso para professores, que estava sendo ministrado nas salas dos andares de cima da escola, no dia do Festival, não buscaram entender a proposta. Eles preferiram cumprir fichamentos de textos teóricos da educação, que certamente estavam ganhando vida por estudantes em uma “pedagogia de autonomia” na passagem para os banheiros da escola, fato que incomodou as educadoras em curso, com o barulho e interrupção do funcionamento normal.

Os alunos que participaram do processo de realização da performance e os alunos de outras turmas da 5ª série foram incentivados a escrever um texto como se fosse uma página de diário sobre o “Manifesto ecológico”, destacando o que ocorreu, o que mais chamou atenção e a relação entre os poemas dos livros comprados por eles e as cenas presenciadas. As respostas foram em grande parte saudosas do que foi visto, com exceção apenas de declarações de que não gostaram do trabalho por ter sido feito por outra turma, rixa comum entre os alunos. Muitos destacaram a criatividade do trabalho e a importância para a aprendizagem de uma nova relação com a natureza. Poucas interpretações feitas por eles estavam enganadas quanto ao que foi planejado e “presentado”. Já a turma que participou do processo incorporou os termos usados por mim para identificar cada parte do “Manifesto” e apresentou pleno domínio do que foi realizado. Aprenderam, inclusive, a usar o termo “performance”, manifestação cultural de conhecimento normalmente restrito à elite da classes artísticas. Não foi possível identificar os elementos que mais chamaram a atenção dos alunos, todas as cenas foram comentadas por eles. Para finalizar, deixo aqui alguns comentários feitos pelos educandos. Depoimentos dentro do depoimentos, afinal, “nós somos um”:

“Os animais são nossos melhores amigos, esse teatro foi para mim mais que apenas um teatro, senti uma coisa que não sei explicar, foi um sentimento maravilhoso, então, por favor respeitem os animais!” - Felipe Abraão da Silva

“Eu gostei muito do manisfesto ecológico, porque ele nos ensina a preservar a natureza, não prender os animais em cativeiro, nem matar eles, e também ele foi muito engraçado na hora das compras, porque na verdade no nosso dia-a-dia é assim, nós somos comprados pelas roupas, calçados, bolsas, bijuterias etc.” - Jaqueline Aparecida Costa

“Foi muito bom para mim, uma ótima experiência. Me ensinou a não ter vergonha do público e a dar mais um passo na minha vida!” - Adriele Stacy Santana Silva, responsável pela leitura dos textos de Folhas verdes, durante a performance.

Participaram do “Manifesto ecológico” os alunos: Adriele Stacy, Alecsander Martins, Ana Beatriz Maciel, Bruna Bravo, Carolina de Souza, Eduarda Diniz, Fernando Vitor, Gabriel Braga, Gustavo Ferreira, Gustavo Doche, Isabelle Lessa, Isadora Camile, Jaine Santos, Jayara Gabriela, Julia Bruna, Keila dos Santos, Laryssa Alves, Lavínia de Andrade, Letícia Fernandes, Lieberty Gonçalves, Lucas de Oliveira, Luiz Claúdio Francisco, Luiz Miller Teixeira, Maria Carolina Fontes e Wallace Ezequiel. Agradeço ao apoio dos pais dos alunos, da direção e coordenação da Escola Maria Vieira Barbosa.