Capa divulgação do livro


Memória e esquecimento no cinema comercial



Lavínia Resende Passos

Mestranda em Teoria da Literatura, Letras/UFMG. Desenvolve pesquisa na área de literatura, cinema e educação. Subcoordenadora do Programa A tela e o texto.


Filmes de (an)amnésia: memória e esquecimento no cinema comercial contemporâneo. Márcio Bahia, Walter Moser, Maria Antonieta Pereira (org.). Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Linha Editorial Tela e Texto, 2009. 203 p.


Filmes de (An)amnésia: memória e esquecimento no cinema comercial contemporâneo é uma coletânea de artigos escritos por pesquisadores brasileiros e membros da equipe da Catédra de Pesquisa do Canadá em Transferências Literárias e Culturais, da Universidade de Ottawa. É a nona publicação em formato padrão da Linha Editorial Tela e Texto, do Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão A tela e o texto.

Atentos ao fenômeno global das mobilidades culturais, os pesquisadores partiram da análise da “transferência” (termo utilizado como conceito operacional) do material cultural de um sistema a outro. Verificou-se que para que essa transferência fosse bem sucedida o material retirado do sistema doador deveria manter sua funcionalidade e seu sentido no sistema receptor. E para que nesse novo sistema tivesse um reconhecimento desse material cultural era necessário um “momento memorialístico”, em que os elementos mnemônicos fossem reconhecidos como vindo de outro lugar onde já tinham certa identidade. É nesse ponto que a equipe de pesquisa se interessa pela questão da (an)amnésia: a identidade é reconhecida como vinda de um sistema anterior, mas é apagada/esquecida para ser reconstruída nesse segundo sistema. Temos, a partir daí, um dos pontos recorrentes do livro que é a hipótese de que o esquecimento é uma função da memória.

Considerando o contexto de mobilidades culturais, o cinema foi a mídia escolhida pela equipe de pesquisa para discutir as relações entre esquecer e lembrar, já que ele também aborda a problemática da memória, criando-se, como o livro mostra, um gênero cinematográfico: os filmes de (an)amnésia, em que os personagens, após um trauma, perdem a memória (amnésia) e tentam recuperá-la (anamnésia). Filmes de (an)amnésia se propõe, portanto, a fazer um levantamento desse gênero cinematográfico, discutindo sua relevância para a questão da memória na contemporaneidade. As discussões apresentadas pelos autores ora se complementam, ora polemizam, buscando referências em textos anteriores e valorizando o caráter de troca e diálogo que se estabeleceu entre os pesquisadores e foi responsável, em última análise, pela edição do livro.

“Estratégicas memorialísticas nos filmes comerciais de (an)amnésia” é o artigo que abre a discussão. Escrito por Walter Moser, o texto é uma introdução ao tema central da obra, revelando em que situação se encontram, na sociedade contemporânea, as questões referentes à memória e ao esquecimento, e em que grau os filmes de (an)amnésia contribuem para que esses fenômenos psíquicos estejam na ordem do dia. De forma bem clara, o artigo também apresenta os mecanismos utilizados pelos cineastas para construírem a narrativa fílmica típica dos filmes de (an)amnésia. Moser analisa experiências individuais e coletivas de subjetivação e, para isso, cita trechos de vários filmes, que serão, em sua maioria, as películas analisadas nos artigos do livro. O levantamento das estratégias cinematográficas de construção da estética do filme de (an)amnésia é o tema relevante desse primeiro texto, o qual funciona como a porta de entrada para o entendimento da questão memória/esquecimento e dos conceitos que norteiam seu debate.

O segundo artigo, de Maria Antonieta Pereira, funciona como um movimento de câmera sobre o filme Amnésia, de Chistopher Nolan. A autora faz um travelling por toda a narrativa, revelando os mecanismos de arquivamento que o personagem amnésico precisa realizar para tentar reconstruir sua memória. O texto discute as estratégias de rememoração de Leonard, como tirar fotos e se tatuar, e também as estratégias cinematográficas, como as cenas que são organizadas em ordem cronológica não-linear, criando uma rede de informações não-conectadas e recriando, para o espectador, um simulacro da sensação vivida pelo próprio personagem. Analisando o filme como um jogo mnemônico, a autora também aborda outras possibilidades de recepção, quando o espectador utiliza as mídias do DVD e do computador para a exibição do filme e, assim, desenvolve outros recursos interativos, enriquecendo a leitura fílmica à medida que produz, ele mesmo, as redes perceptivas responsáveis pelo sentido da obra em tela.

Márcio Bahia é o autor de “A memória como construção: os filmes de (an)amnésia e a falsa memória”. Esse artigo nos apresenta uma visão do cinema comercial e de como o jogo de recuperação da memória, ou da falsa memória, está presente em certas obras editadas no período 1932/2008. Filmes como Depois da vida, Uma segunda chance, O homem sem passado, O vingador do futuro e Valsa com Bashir são algumas das narrativas citadas e/ou analisadas. Para essas análises, o autor parte do princípio de que “a memória é um processo de construção” e também de problematizações como o que ocorre quando certos dispositivos psíquicos, neurológicos e psicológicos não funcionam dentro do que se considera um padrão de normalidade. A análise dos filmes por um viés psicológico, com base em teorias dessa área, diferencia o artigo dos demais e abre novas possibilidades de leitura da memória, inclusive quando o autor examina Amnésia, já analisado nos capítulos anteriores.

O artigo “Filmes de amnésia e a travessia do rio Lethe”, de Pierre Sossou, apesar de tratar de três filmes – O homem sem passado, de Aki Kaurismäki, Depois da vida, de Hirokazu Koreeda e Atlântico negro, de Renato Barbieri, busca desenvolver uma análise filosófica da arte cinematográfica. Utilizando-se da mitologia, principalmente dos relatos contidos em República, de Platão, o autor analisa o que ocorre com a memória e o esquecimento, quando são transportados de um espaço a outro, seja da vida terrena para a eterna, seja de um continente a outro. Estabelecendo um ponto comum de análise dos três filmes, a travessia do Rio Lethe, o autor não só desenvolve cuidadosas leituras do memorialismo neles presente, mas também retoma, via platonismo, a própria memória cultural do Ocidente como uma fonte de constante produção narrativa.

Em “Imagens desconcertantes: memória, linguagem, paisagem e identidade em Memoires Affectives, de Francis Leclerc”, Peter Hodgins parte da oposição entre cinema de vanguarda e cinema hollywoodiano para analisar a película citada. Demonstrando como esse filme apresenta a memória enquanto ocorrência fragmentada, descontínua e múltipla, Hodgins usa teorias de Peter Wollen e Gilles Deleuze para localizar e problematizar esses elementos, encontrados ao longo da narrativa cinematográfica.

O artigo “A hiperamnésia, entre encadeamentos e libertação: Funes e o memorioso de Copola” tem seu foco, como o próprio título já indica, na hipermemória, que é um fenômeno presente nos personagens das obras citadas. Iona Winnicki analisa o filme Velha juventude, de Francis Ford Copola, que foi baseado em um conto homônimo de Mircea Eliade, escritor romeno. A teoria sobre hiperamnésia é melhor compreendida quando a autora parte para uma análise comparativa entre o filme e o conto “Funes, o memorioso”, de Jorge Luis Borges. Ambos possuem personagens com grande capacidade de rememoração e a análise desses casos mostra como a positividade atribuída à memória nem sempre se confirma.

O último artigo, “Retorno à Argélia e impossível regresso à Argélia: formas de esquecimento e figuras da ausência em exílios, de Tony Gatlif”, é uma proposta de articulação entre as memórias coletiva e individual, a partir de um levantamento das memórias do passado colonial da Argélia. Esse resgate é feito pelos personagens do filme analisado, que se propõem a encontrar suas raízes nacionais.

Embora os sete artigos do livro analisem a questão da memória no cinema comercial, cada um deles aborda o tema sob um enfoque diferente, utilizando recursos de psicologia, filosofia, sociologia, antropologia e diferentes teorias da literatura. O debate dos estudos que abordam os processos de (an)amnésia torna-se, dessa forma, rico e ao mesmo tempo acessível a um leitor médio interessado em cinema contemporâneo. Os artigos podem ser lidos como produções independentes ou como textos que se completam uns aos outros e que, sobretudo, provocam no leitor o desejo de ver os filmes analisados. Além disso, o livro contribui para se ler, de forma crítica e apaixonada, o cinema comercial, promovendo uma abertura da cultura letrada para examinar, de forma lúcida e sensível, certas manifestações da cultura de massa.

Ao final do livro, o leitor é surpreendido por um adendo, em que vários pesquisadores homenageiam Walter Moser, agradecendo a ele pelo trabalho desenvolvido e tornando públicos outros espaços de memória e arquivo. Como está dito na contra-capa do livro, Filmes de (An)amnésia é para ser lido por pesquisadores, simples curiosos e amantes da sétima arte. Todos encontrarão nessa obra um rico material para refletirem sobre a tão contemporânea questão da memória e do esquecimento.