A arte da escritura imagética da memória
Márcio Seligmann-Silva(7) observa os desdobramentos da arte contemporânea e sua relação com a memória: “As telas de cinema, televisão e computador também funcionam como ‘tabletes de cera efêmeros’ para a inscrição dessa arte dos ‘traços’ e ‘rastros’ – em uma palavra: arte da escritura imagética da memória”. Pensar a questão do poema como uma escrita imagética da memória em um ambiente de telas de distintas naturezas é uma das contribuições da videopoesia. Como uma possibilidade de reapropriação dos meios, essa produção mostra outras maneiras de escrita ao lidar com uma memória eletrônica que se estende em rede. Em seu recém-lançado Livro de releituras e poiética contemporânea, E. M. de Melo e Castro , na qualidade de poeta experimental dos mais atuantes, amplia o conceito de rede usando uma metáfora têxtil:
Vivemos sincronicamente na REDE (net ou web) que envolve o mundo e é uma metáfora têxtil; perdidos em labirintos centrados e descentrados que estão em toda a parte e são uma metáfora helênica. Entre essas duas metáforas de origem diferente, a sincronicidade instala-se com uma relação entre o tempo e o espaço, em que no mesmo espaço se realizam vários tempos, e no mesmo tempo coabitam vários espaços(8).
A relação do tempo com o espaço é tensa e no contexto da rede torna-se mais delicada. A poesia talvez seja uma fina membrana nessa relação: seria intereessante retomar a leitura de Caosmose, de Felix Guattari, no ambiente tecnológico no qual se insere a videopoesia, pensando que a máquina vai além de um pensamento em torno da técnica.
Por isso, vale a pena insistir ainda na poesia, como uma potência de imagem aberta às possibilidades do pensamento. Quando Guattari afirma que “a poesia, atualmente, talvez tenha mais a nos ensinar do que as ciências econômicas, as ciências humanas e a psicanálise reunidas”(9) , podemos entendê-la como uma abertura possível para se tencionar a relação entre meios/suportes e o que ambos têm em comum, a memória. Esse talvez proposto pelo autor de Caosmose é muito próprio, pois elimina um tipo de saber por acúmulo. É um saber cujas regras e formatos próprios das ciências são um peso que dificultam a dança do pensamento que o poema propõe. E com isso o trânsito da poesia sobrepuja até mesmo o que seria um “suporte” de papel, tela ou corpo. Essa escrita é assim até em relação ao “sentido”, e isso pode dificultar sua recepção. Como afirma Jean-Luc Nancy, em seu ensaio Resistência da poesia: “Poesia não tem exatamente um sentido, mas antes o sentido do acesso a um sentido a cada momento ausente, e transferido para longe. O sentido de ‘poesia’ é um sentido sempre por fazer”.(10)
Por isso, mais que conceituar um videopoema com suas delimitações e reconhecer outros tipos de produção - clipoemas, livrídeos - é interessante tentar compreender esse movimento da poesia nos diversos meios e suas configurações espaço-temporais que não se rendem apenas ao projeto gutemberguiano. É por isso, dentro de um sentido a se construir, que o poema pode se articular como uma rede e como um espaço de memória. E, quando isso acontece, não é por outro modo, senão pelo mais difícil. Segundo Jean-Luc Nancy,
A poesia é assim a negatividade na qual o acesso se torna naquilo que é: isso que deve ceder, e com esse fim começar por se esquivar, por se recusar. O acesso é difícil, não é uma qualidade acidental, o que significa que a dificuldade faz o acesso. O difícil é o que não se deixa fazer, e é propriamente o que a poesia faz. Ela faz o difícil. Por ser ela a fazê-lo, parece fácil, e é por isso que, desde há muito, a poesia é vista como “coisa ligeira”. Ora não se trata unicamente de uma aparência. A poesia faz a facilidade do difícil, do absolutamente difícil. Na facilidade, a dificuldade cede. Mas isso não significa que ela seja removida.(11)
Com um mundo em que a informação é de fácil acesso, a poesia vai pela contramão, assim como sua capacidade de articular outros sentidos que não são apenas os de aceleração ou informação: a poesia e suas construções seguem no sentido inverso. A necessidade da informação a cada instante afirma e confirma a própria necessidade de estarmos em rede. Nesse caso, a poesia pode também estar em rede com uma “função” informacional. Ao mesmo tempo em que o acesso às mídias se tornou mais frequente, as possibilidades de usos dessas mídias em relação ao poema também se tornam contraditórias, quando o predomínio da técnica não garante à poesia sua potência. Como se estivéssemos em um limite da técnica perante a subjetividade criadora, Felix Guattari afirma:
Na poesia, a subjetividade criadora, para se destacar, se autonomizar, se finalizar, apossar-se-á, de preferência: 1) do lado sonoro da palavra, de seu aspecto musical; 2) de suas significações materiais com suas nuanças e variantes; 3) de seus aspectos de ligação verbal; 4) de seus aspectos entonativos emocionais e volitivos; 5) do sentimento da atividade verbal do engendramento ativo de um som significante que comporta elementos motores de articulação, de gesto, de mímica, sentimento de um movimento no qual são arrastados o organismo inteiro, a atividade e a alma da palavra em sua unidade concreta.(12)
É muito importante notar o limite da técnica frente à subjetividade criadora, pois de alguma forma outra maneira de fazer política aí se estabelece: uma política dentro da rede que faz repensar, inclusive, a memória. Em “Poesia: uma decisão”, de Silvina Rodrigues, o argumento em torno da imagem e da memória nasce justamente do fato de a memória não ser um depósito:
O facto de as imagens nascerem da memória não significa que a memória seja equivalente a um depósito, um arquivo (“o imaginário”). Pelo contrário, nascem porque a memória é a possibilidade de passar do indecifrável à significação infinita, de transportar as afecções para o campo das interpretações. Isso não se pode confundir com a recordação que nos orienta o agir cotidiano, pois esta é já a conversão da energia criadora em fórmulas que visam uma finalidade prática, fórmulas adequadas aos processos de sobrevivência como simplificação da vida.(13)
No discurso da era eletrônica, onde o “espaço” da memória é mensurado em gigabites ou terabites, virando sinônimo até mesmo de “depósito”, Silvina Rodrigues trata a memória como uma operação:
A memória-interpretação-invenção é uma memória carregada de emoção precisamente porque nela se procuram os indícios do que nunca foi vivido; ela não é um produto, mas uma operação, um engendramento de imagens sempre enigmáticas, que detém na capacidade de ilusão a verdadeira força, a força criadora. É o que acontece na “visão” poética, imagem incomensurável porque imagem-aparição, algo como um relâmpago que pelo excesso de luz fulmina, uma exclamação que não se transforma em discurso, mas é nele que persiste, em excesso, expressão do inexprimível.(14)
E, quando falamos de memória e imagem como uma operação, essa relação, além de uma virtualidade, se dá no próprio corpo. Por isso, pensar nesse movimento da poesia pela rede e pela memória aciona um corpus, para mencionar um texto de Jean-Luc Nancy, o qual é fundamental para se pensar o poema, em sua proposição e articulação de imagens:
O intervalo entre os corpos é o seu ter-lugar em imagens. As imagens não são aparências, ainda menos fantasmas ou alucinações. São o modo como os corpos se oferecem entre si, são a vinda ao mundo, ao bordo, à glória do limite e do fulgor. Um corpo é uma imagem oferecida a outros corpos, todo um corpus de imagens lançadas de corpo em corpo, cores, sombras locais, fragmentos, grãos, auréolas, lúnulas, unhas, pêlos, espumas, lágrimas, dentes, babas, fendas, blocos, línguas, suores, líquidos, veias, penas e alegrias, e eu, e tu.(15)
Essa articulação de imagens citadas por Nancy tem um ponto forte de diálogo com o primeiro conjunto de videopoemas lançado comercialmente no Brasil em 1997: Nome, de Arnaldo Antunes. E, de uma maneira geral, lendo a poesia como corpus, podemos pensá-la nesse sentido sempre por se fazer, independente do meio em que esteja. E aqui voltamos a Melo e Castro, que em seu Livro de releituras lançou também um pequeno conjunto de sua produção com videopoemas, numa coletânea intitulada Antsinc – Antologia sincrônica. É interessante perceber esse movimento quando em 1956 o poeta português exibe seu primeiro videopoema em uma emissora pública de televisão portuguesa, chamado Roda lume. Segundo Arlindo Machado, pouco tempo depois da exibição, o videopoema foi destruído. A partir de alguns frames do original, Melo e Castro reconstituiu o videopoema, que pode ser visto em seu livro mais recente, Livro de releituras e poiética contemporânea, que é acompanhado por um DVD-coletânea. Em A poesia na tela, Arlindo Machado fala um pouco mais sobre o trabalho do poeta Melo e Castro:
Nos anos 80, o poeta Melo e Castro teve uma idéia pioneira de lançar mão do gerador de caracteres para produzir poemas animados, pensados especificamente para veiculação na televisão. Na verdade, já em 1968, Melo e Castro havia realizado um pequeno videopoema de pouco menos de três minutos de duração, denominado “Roda lume”, que chegou mesmo a ser colocado no ar, no ano seguinte, pela RTP (Rádio e Televisão Portuguesa), num programa de informação literária. Depois, mais exatamente em 1985, quando a Universidade Livre de Lisboa adquiriu um dispositivo completo de geração de caracteres e edição em vídeo, Melo e Castro foi convidado a desenvolver ali um projeto de videopoesia que acabou por se constituir numa das referências mais importantes da atual poesia que utiliza recursos tecnológicos.(16)
Portanto, conceituar esses movimentos como uma rede onde a poesia se desdobra permite que pensemos o trânsito do poema na tela e além da tela. Melo e Castro pergunta: “que novo futuro, então, para a poesia?”. Longe de ser uma resposta, sua preocupação com as tecnologias é na verdade uma manobra para nos fazer pensar um pouco mais:
É aqui que irrompem as tecnologias, mostrando que tudo pode ser dito num poema, já que tanto o sim quanto o não são categorias alheias ao sex-appeal do inorgânico, como observa o italiano Mario Perniola. É que, na sua capacidade de sedução, os elétrons e os fótons, assim como o código digital, não são nem bons nem maus, mas apenas rigorosos e eficazes em matéria de comunicação. E o poema é, agora, o fogo frio do texto!”(17)
Abstract
This paper relies on a brief discussion around poetry and its relation with electronic media. Therefore, the video-poetry articulates itself as a written project that relates to memory, but through other support systems, such as the screen of a computer, television, amongst others.
Palabras-clave:
poetry – video-poetry – memory